21 novembro 2014

Eva

Há alguns anos Eva esperava por esse momento. Finalmente, estava livre para fazer o que quisesse. A primeira coisa que escolheu, dentre as inúmeras ideias e desejos que perturbavam sua mente, foi viajar. Não tinha um destino específico, mas não o faria para conhecer novos lugares, muito menos para assistir a algum congresso. Viajava pelo simples fato de estar só, em um lugar desconhecido, sem nada de concreto a fazer – a não ser se manter com o pouco dinheiro que levara.

Tinha comprado as passagens com seu próprio dinheiro, que juntara durante alguns meses dando aulas para crianças em uma escola de línguas. Chegara até ali sozinha, sem que ninguém precisasse pegar em sua mão e lhe guiar pelo meio turbulento da vida adulta. Afinal, não era tão difícil assim ser adulto. Dezenove anos não parecem lá essas coisas quando tudo o que você tem que fazer é ir às aulas e tirar boas notas.

Nos últimos quatro anos só havia viajado de carro, com os pais; e raramente de ônibus, para visitar algum parente em alguma pequena cidade do interior. Também havia voado de avião, só uma vez. Sem contar as inúmeras – quase infinitas – viagens de uma hora que fazia de casa à escola, todos os dias. Nenhuma dessas viagens importava. Aquela, sim, era diferente: estava ali somente por sua vontade.

Poderia abrir o vidro, sentir o vento da estrada passando pelos seus cabelos soltos, ouvir o zumbido indistinto das árvores na margem da rodovia cantarolar em seus ouvidos. Podia, já dentro do ônibus, cercada de poucas outras pessoas que se aventuravam em uma viagem no meio da semana, observar tudo o que lhe fora borrado nos últimos anos. Imaginava se aqueles caros companheiros de ônibus também se sentiam felizes. Ou se apenas rumavam para reuniões de negócios, visitas de família, ou fugas da realidade.

Ajeitando-se no assento, Eva olhou para o relógio: 20h16, piscavam os números sob a luz artificial que vinha do teto do ônibus. Sumindo no horizonte, o sol – que especialmente naquele dia parecia ter se atrasado – emitia os últimos raios sobre as nuvens, tornando tudo aquilo uma pequena e malfeita recriação de Into the Wild. Abrira ainda mais a janela, para sentir o vento que lhe fora negado em troca do conforto do ar-condicionado do carro dos pais.

O vento parecia correr mais rápido. Cada vez menos árvores, e mais borrões – com suas sombras alongadas ao infinito que Eva deixava para trás – passavam por seus olhos. Os fios finos de cabelo se embaralhavam e dançavam complacentes ao movimento do ar corrente. Mais rápido, o ônibus seguia rumo ao desconhecido, que poderia ser difícil e nada convencional, mas que só atiçava o desejo de viver e explorá-lo. O vento frio trazido pelo início da noite ardia-lhe os olhos, que começavam a lacrimejar. Fechou-os. Pela última vez. Abandonara aquela vida segura e já conhecida em busca de um propósito.

O vento era veloz. Em direção ao sol e a algo mais, o ônibus acelerava. Eva seguia, junto aos outros, pacientemente. Como se certa de que fizera tudo a seu alcance. Estavam rápidos. Talvez rápidos demais.

Texto escrito pelo meu amigo Lucas no blog dele, baseado em sonhos reais

19 novembro 2014

19 de novembro de 2014. 03:45am.

19 de novembro de 2014. 03:45am.

Querida Rua das Margaridas,

Desde que fui embora eu acordo todo dia no mesmo horário. Sempre tomo banho e vou trabalhar sem reclamar. Saio do trabalho, vou pra sala do grupo de teatro e durmo exatamente meia hora antes de correr pro estágio. Saio do estágio e corro novamente, dessa vez para o restaurante, de onde sigo pra sala 204, disposta a passar as próximas três horas ouvindo algum professor falar de qualquer assunto que não me interessa enquanto meu estômago, pesado, reclama de ter que pegar o ônibus pra ir embora. Dou boa noite pros meus pais e durmo até começar tudo de novo.

Não tenho feito (ou cogitado) nada de errado, perigoso ou letal. Meu mundo está tão "certo" que não há nem como refletir acerca do tempo que não sobra pra perceber quão profunda é a mediocridade em que resolvi ancorar o bote. Eu até aceito de cara boa. Juro.

Não leio mais sobre literatura nem me interesso pela vida das pessoas no ônibus ou pela dos meus amigos; não vejo novelas, não vou pra baladas, não bebo, não fumo e não quero estar perto de ninguém, nem das pessoas que me aquecem o coração. Não ouço mais death metal e uso esmalte transparente nas mãos, pra mostrar respeito e polidez. Esses dias inclusive me chamaram de conformada e eu me conformei. É só cansaço com um pouco de desânimo, me deixem viver em paz! Será que não entendem que eu estou em busca de ser alguém, de viver melhor?! Estou seguindo todas as regras...

Tudo bem, confesso que ainda não sei o que fazer da minha vida... Mas ao resto do mundo já digo o que querem ouvir, assim não me deparo com minhas contradições e contenho qualquer faísca das, tão antigamente comuns, rebeliões dentro de mim. Estou em progresso. Já deixei de questionar, de pesquisar, de ter curiosidade, de planejar e, adivinhe! De querer. Não quero nada. Não quero nem sair dessa situação que eu não quero permanecer. Está tudo nos conformes. Estou bem. Juro.

Estou escrevendo, mas não quero mais escrever. Mas não se preocupe, estou sendo responsável. O problema é que parte de fazer a coisa certa é dizer a verdade aos poucos e somente a quem convém. E a única verdade em tudo isso, minha querida, é que, no fim das contas, eu já fui uma pessoa melhor.

Sinto sua falta como lhe faltam os girassóis.

Rua Magnólia.

06 dezembro 2013

rima pobre é coração de joão

Era uma vez um poema esquecido
sobre um tal menino João
De seu feito imperfeito
cantam os menestréis mil canções
sobre a morte de seus corações

Corações no plural pois os tinha por demais

era um pra amar Ana, outro pra Vitória
um pra guardar rancor
um quarto pra caber os amigos
nenhum espaço pra Glória

De tanto sofrer por infarto

João certa feita se viu exausto
um coração só já sofre demais
quatro por'certo é o puro holocausto

01 dezembro 2013

A nebulosa história do surpreendente invento do Dr. Angelus - que Deus o tenha!

Já faz um bom tempo desde o acontecido, mas posso me lembrar com bastante clareza da peculiaridade daquele dia. Até hoje correm boatos sobre o incidente na casa do Dr. Angelus - que Deus o tenha! -, mas nenhum se aproxima do que aconteceu de verdade naquela tarde... Eu, bom, eu sei o que aconteceu. Eu estava lá. Eu vi tudo...


Como um mordomo exemplar, cheguei ao serviço a tempo de preparar e servir as torradas crocantes que o Dr. Angelus - que Deus o tenha! - tanto estimava em seu desjejum antes de seguir para o laboratório. Naquela manhã em especial ele negou o café da manhã, disse estar sem fome e comentou qualquer coisa ininteligível sobre uma grande descoberta que poderia mudar o rumo da humanidade antes de sair às pressas. Não me entendam mal, mas o Dr. Angelus - que Deus o tenha! - era um senhor um tanto quanto rechonchudo e tê-lo negando comida, ainda mais suas tão preciosas torradas, só poderia ser um tipo de mau presságio.



Claro que fiquei intrigado com tamanha estranheza, mas sou um mordomo exemplar e não me deixei abalar, afinal, todo mundo tem direito de acordar ansioso com uma possível descoberta que poderia mudar o rumo da humanidade. Repetindo isso até me convencer continuei meu serviço até a hora do almoço, quando pus a mesa sem nem mesmo mensurar o tamanho do problema que me esperava.

23 março 2013

Ser ou não ser: eis a coisa questão

Tinha um buraco no chão. Chamo de buraco porque não sei ao certo o que era, mas tenho certeza que não era um buraco propriamente dito, não daqueles que a gente costuma encontrar. Assemelhava-se mais a uma mancha, só que não era uma mancha tipo as manchas que costumamos ver, o que me faz duvidar se de fato o era. Talvez fosse uma lasca... Se parecia mesmo com uma lasca, mas tinha bordas que davam noção de profundidade e, pensando bem, não era uma lasca. Jamais teria como ser... Vai ver era um buraco mesmo.

Só que não era fundo. Nem raso. Nem aquilo que o delimitava eram bordas. Havia um jogo de cores e sombras pra iludir, pra fingir ilhas num buraco que não é buraco, tampouco algo substancialmente possível para ter ilhas. Talvez fosse nada, talvez fosse foice, fossa. Mas sendo qualquer coisa nenhuma sei que o era de qualquer perspectiva. Olhando de cima era, de baixo também, dos lados tentava enganar fingindo ser outra, mas não conseguia, no fim continuava sendo. Eram todos; sem ser nenhum igual ao outro.

Que poderia ser então? Um ponto de interrogação num chão supostamente esclarecido; uma dúvida bem colocada entre quatro cerâmicas; uma obra de arte... Quem sabe? Talvez não fosse nada disso afinal. Não cheguei perto o suficiente pra saber se respirava, mas vai ver a coisa tinha vida e saia correndo quando alguém chegava perto, deixando só a marca de que um dia esteve ali. Provavelmente ela tinha histórias pra contar e anseios de ir pra algum lugar longe de toda monotonia. Ou vai ver não tinha vida e mesmo assim corria pra se esconder de mim. Entendo que é compreensível que um ser que não sei o que é tenha medo de seres que acham que sabem o que são.

Mas, se mancha, se lasca, se bicho, se falha ou se obra de arte não importa, porque, independente do que fosse tinha forma de ser e, aposto a própria coisa, que era. Parmênides e sua família que me desculpem, mas o ser era e o não ser também, o buraco que não era buraco poderia ser o que quisesse, era livre! E por isso era um em outro, vários em um só. Só era, do jeito mais indecifrável de ser, uma coisa coisada, sem nome, que, poxa vida, que coisa! Ou talvez não fosse... A propósito, nem sei mais se sei que estava lá. Vai ver nunca estive...

01 março 2013

algodão doce

Boa noite leitores que provavelmente não existem mais..!

Tudo bem? O dia está claro ou nublado por ai? Porque infelizmente aqui nessa cidadezinha tá difícil saber o que anda mais desbotado... Entretanto isso não é motivo para tristeza, não é mesmo?! Afinal, como prometido, aqui estou eu! Sim! De volta outra vez!
E para começar, na tentativa de melhorar o astral de qualquer um, eis que trago para compartilhar com a vossa senhoria um texto alheio às minhas mãos! Dessa vez a vítima é um dos meus autores independentes favoritos. Confesso que temos uma relação platônica muito intensa, li o blog dele inteirinho em alguns dias e fiz questão de procurar facebook, twitter, flickr e et ceteras sociais. Claro que apaixonei... Ficou curioso(a)? Então leia o texto que eu conto mais lá no final.


ALGODÃO DOCE
por Bruno Palma e Silva

Território perigoso é o da, digamos..., massa corpórea feminina. Duvido que haja um homem na face da Terra - tirando-se cabeleireiros, maquiadores e estilistas— que saiba como lidar com um assunto tão delicado.

     É um belo dia de verão e vocês decidem passear no parque. Sol, céu azul, cachorros e crianças de bicicleta. Tudo corre muito bem até que você, na maior ingenuidade, só querendo ser gentil, oferece um algodão doce, ou uma maçã do amor, ou uma Coca, sei lá. Ficamos com o algodão doce, para o exemplo ficar bem dramático. Ela vai sair com algo do tipo:

     — Comecei regime ontem.

     E, pronto, acabou tudo. Você, meu amigo, acaba de armar para si mesmo uma cilada. Das grandes. Das grandes mesmo.

05 novembro 2012

[Crônica] Vou de Mercedes com motorista e acompanhante

Decidi escrever esse texto porque fiquei indignado com a falta de conhecimento das pessoas sobre quanto é ruim andar de ônibus. Em contraposição a um recente post da Juliana aqui no blog dessa vez não vou falar das vantagens de pegar um transporte lotado todos os dias, e sim das suas desvantagens.

Estava na porta de um colégio ontem depois de fazer aquela irritante/inútil prova no ENEM, e ouvi uma garota de uns 18 anos reclamando com a amiga:

- Nossa meu pai já tá atrasado 10 minutos! Será que ele não sabe chegar no horário não?!

Fiquei triste (pra não ter que utilizar palavras de baixo calão) ao ouvir aquilo. Não por ela falar mal do pai, mas por saber que existem pessoas no mundo que não sabem o que é andar de ônibus. Por isso resolvi mostrar-lhes o que realmente é sofrer com transporte público. Todos seus problemas e dificuldades começam no ponto de ônibus (ou ‘busu’ para os íntimos).