sobre um tal menino João
De seu feito imperfeito
cantam os menestréis mil canções
sobre a morte de seus corações
Corações no plural pois os tinha por demais
era um pra amar Ana, outro pra Vitória
um pra guardar rancor
um quarto pra caber os amigos
nenhum espaço pra Glória
De tanto sofrer por infarto
João certa feita se viu exausto
um coração só já sofre demais
quatro por'certo é o puro holocausto
Em desatino vestiu-se de desespero
desvairado pegou uma faca trôpega
fincou-a no lado esquerdo às cegas
e bradou a quem conseguisse ouvir:
- meu peito hei de abrir
de lado a lado vou rasgar a pele
os nervos e as conveniências
quatro corações
não merecem condescendência
João da lei, João sem rei
abriu o peito à lâmina fria
aço gelado tal qual caricia
que moça alguma fizera um dia
Cheio de coragem começou a mutilação
chegando enfim ao primeiro coração
direito de Ana, usucapião
esfaqueou-o num golpe só
brotaram de lá catorze rimas
e uma peça velha de dominó
Ao encontrar o de Vitória,
pagou a dívida, quitou a moratória
bastou dois golpes pra desobstruir
Sentiu o sangue esvair e o peito inchar
já podia respirar sem se cobrar
Partiu então para partir
em miúdas partes
o até então resistente.
Coração rancoroso tem casca grossa
é preciso deixá-lo em farrapos
queimar os pedaços
afogá-los na fossa
Foi preciso trabalho árduo
doce de leite e uma seresta
faca cega miocárdio amargurado
horas de tortura incessante por uma fresta
Assim que se abriu saiu de lá um bicho papão
e origamis coloridos por nenhuma razão
Quase satisfeito João não quis descansar
de quatro corações já fora a trinca
faltava apenas o de amigo
portanto pôs-se a escavar
O quarto coração era valente
difícil de achar
Com o peito arregaçado, encharcado
pouco a pouco foi rompendo artérias
músculos e todo resto de matéria
O ultimo coração de João
jazia agora em suas mãos
Tinha um quê de imortal, aquele coração imoral
nem cem facadas abriram os ventrículos
nem mesmo os vitrais
João da lei se viu obrigado a ceder
Rei mendigo, rei inimigo,
rei castigo, rei abrigo
se precisava de um coração que batia a pena
que fosse então o de amigo
sem martírio de poeta pobre
que ainda rima João com coração
Encantado e perdido em profunda epifania
João começou a recosturar
o peito que fizera dilacerar
Pegou as rimas e com ela deu os pontos
costurou poema por todo o corpo
A dívida paga aliviou a dor de cabeça
lavou o restinho do sangue da alma
e a vingança do karma
Com os origamis fez ataduras,
arte, pra proteger de bicho papão
tem que ser forte, tecnologia do japão
E por destino quando se viu refeito
João tinha só um coração batendo no peito
Pensou que não seria mais capaz de chorar
e tamanho foi o susto que levou ao perceber
que o que machucava
era exatamente o que restou
É que essa coisa de amor
não tem coração separado
instala onde pode e se acomoda
feito moda velha de viola.
(Esse poema foi escrito para meu amigo João que, numa das nossas conversas, achou que seria melhor, ter mais de um coração.)
Bravíssimo *-*
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